O (mito do) amor materno - depravação total e a maternidade


Em 1980 Elisabeth Badinter escreveu o livro conhecido como ‘O mito do amor materno’*. Esse livro causou grande comoção ao negar a visão do amor materno como algo essencial, natural e instintivamente feminino. A tese defendida pela autora é a de que a ideia comum da existência de um instinto materno não passa de mito e que não há uma conduta materna universal e necessária. A maternidade não está inscrita na natureza feminina, não é inerente à condição da mulher, não é determinado biologicamente, mas é algo construído de acordo com as normas culturais - o amor materno é algo variável, incerto, frágil, imperfeito e muitas vezes inexistente.

Ainda hoje a tese de Badinter tem sido usada por muitos movimentos femininos como justificativa para a desvalorização e rejeição dos papéis maternais femininos e do valor da maternidade, para o alívio de consciência daquelas que preferem negligenciar o seu papel e para amenização da culpa daquelas que decidem matar seus filhos no ventre.

Creio que algumas considerações pertinentes podem ser feitas a partir desse livro, principalmente nesses dias em que presenciamos a degradação dos valores humanos com relação à vida. Juntamente com a feminilidade, o amor materno tem sido sistematicamente desconstruído, avançando etapas que foram desde a desobrigação moral da mulher com relação aos seus filhos até o que vemos hoje com a completa dessensibilização com relação à vida intrauterina.

A negação da maternidade essencial

Badinter fala fundamentalmente contra a visão essencial da maternidade. Como a própria autora declara, a questão é essencialmente de ordem metafísica. Ela nega a existência de uma realidade última da maternidade que permanece estável mesmo com as experiências diferentes e contraditórias ao decorrer do tempo. Segundo ela, a maternidade, bem como a ideia de amor e valores maternos, é uma construção social determinada temporal e culturalmente e, por isso mesmo, variável, fluida e não universal.

Sua ideia segue o mesmo fluxo anti-essencialista de tantas outras autoras, dentre elas Simone Beauvoir, que são contrárias a ideia de uma “natureza feminina”, de uma feminilidade essencial, de um padrão moral universal, e que defendem a multiplicidade de experiências femininas, todas igualmente válidas e morais.

Assim, a ideia de que a maternidade e o amor materno estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina e a ideia de que toda mulher foi feita para ser mãe (e uma boa mãe) é negado. Sua negativa utiliza como justificativa uma série de provas as quais ela chama de exceções à norma do amor materno. Segundo Badinter, é necessário admitir que há exceções demais à regra do amor materno para que não sejamos forçados a questionar a própria regra.

Se a maternidade é algo natural, essencial, inscrito no íntimo do coração de toda mulher, como explicar a falhas do amor materno tão fortemente grotescas e tão claramente observáveis por toda a história da humanidade?

Como explicar as estatísticas anuais de abandono de milhares e milhares de bebês na França urbana do século XVII em casas de cuidadoras sem jamais terem conhecido o olhar da mãe? Como explicar os inúmeros casos comuns e sabidos de mães que enviavam seus filhos para serem cuidados por amas de leite, longe de sua presença por muitos anos? E como explicar as práticas comuns das comunidades primitivas de assassínio de bebês?

Utilizando esses argumentos, a autora rejeita por completo qualquer ideia de instinto materno como "uma tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que, uma vez satisfeito esse desejo, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos" (Larousse do século XX edição de 1971). Contestando tanto o caráter inato e a universalidade do sentimento materno, Badinter diz que a mulher pode ser "normal" sem ser mãe, e que toda mãe não tem uma pulsão irresistível a se ocupar do filho.

Badinter afirma que a constatação da falibilidade e da frugalidade do amor materno inevitavelmente desafia o nosso conceito de natureza e nossa fé em um Deus bom que criou todas as coisas de maneira perfeita. Ela então acusa os cristãos de ignorar e não admitir essa realidade.

“é verdade que a contingência do amor materno suscita uma terrível angústia em todos nós. Incerteza insuportável que põe novamente em questão nosso conceito de natureza, ou nossa fé em Deus. Como pode o melhor dos mundos incluir, além do mal físico, moral e metafísico, a ausência possível do amor de mãe? Os crentes, e os amantes do determinismo natural e da ordem que o acompanha, dificilmente são capazes de admiti-lo” (p.17)

Mas será essa a realidade? O que as Escrituras nos falam sobre a maternidade e sobre o amor materno? Quais respostas podem ser dadas aos fatos demonstrados historicamente.

As Escrituras e o Amor Materno

As acusações da autora e os exemplos levantados por ela para mostrar a falsidade de um suposto amor sublime, natural e universal materno apenas corroboram para o ensino Bíblico.

Partindo da perspectiva da existência de um Deus pessoal que criou os seres humanos com propósitos bem definidos, afirmamos a existência de uma essência feminina, bem como de uma natureza essencial da maternidade.

Deus criou a humanidade de acordo com seus propósitos bem definidos. Criou homem e mulher perfeitos assim como tudo o que se refere a suas funções e relacionamentos. Ao criar a mulher com o potencial para a maternidade estabeleceu a natureza essencial do amor, do compromisso e da responsabilidade materna, uma vez que a maternidade faz parte da constituição natural feminina.

A mulher é uma criação distinta com características e potencialidades especiais. Deus cria a mulher fisicamente diferente e essas diferenças são profundas. Ela é criada com funções biológicas diferentes e entra essas se destaca a maternidade.

Assim como não foi sem intenção que Deus deu capacidades, talentos e dons à mulher, não foi à toa que Ele a criou com o potencial sobremodo maravilhoso para a maternidade.

Mesmo não sendo o meu objetivo explorar as questões biológicas uma vez que essa, definitivamente, não é a minha área, é interessante notar como o Criador desenha até mesmo hormônios exclusivamente femininos que estão intimamente relacionados à função materna de afeto, de ligação emocional entre mãe e filho como é o caso da ocitocina e da prolactina.

É inegável o compromisso e a obrigação moral de uma mãe para com aquele a quem ela gera por meio da possibilidade natural concedida por graça divina. Existe uma responsabilidade para com Deus, que a criou e possibilitou a maternidade. E existe uma responsabilidade para com o que é gerado, por ser sangue do seu sangue, carne da sua carne, passível e necessitado de cuidados e proteção. Considerando os vínculos e afetos, indiscutivelmente, em um ambiente livre dos efeitos devastadores do pecado, a ligação afetiva e emocional era naturalmente plena.
Afinal, quem em sã consciência negaria o compromisso e a obrigação moral de uma mãe para com seu filho?

Badinter reconhece a existência e admite de certa forma a necessidade do amor materno original quando diz que “Quanto a mim, estou convencida de que o amor materno existe desde a origem dos tempos, mas não penso que exista necessariamente em todas as mulheres, nem mesmo que a espécie só sobreviva graças a ele” (p.16). Suas conclusões, a partir das suas observações por demais generalistas, a levaram a defender que a maternidade não está ligada à natureza feminina (o que faz muito sentido quando nem ao menos se defende uma ‘natureza feminina’).

Sua acusação de uma falta de honestidade dos crentes em admitir a falibilidade do amor materno desconsidera o entendimento cristão da natureza da mulher e das relações maternas atingidas pelo pecado. O diagnóstico fornecido pelo mito do amor materno aponta para a realidade caída, depravada da realidade.

Depravação total e amor de mãe

O amor materno é um instinto, uma tendência feminina inata ou um comportamento social, aprendido, variável de acordo com costumes e tempos?

As Escrituras respondem às essas perguntas levantadas por Badinter. O amor materno (sejam as responsabilidades, sejam as afeições) são essencialmente femininas, intencionadas e desenhadas de maneira perfeita pelo Criador e, por essa razão, fazem parte da natureza da mulher. Entretanto, com a entrada do pecado, todas as mulheres tiveram suas capacidades maternais atingidas em maior ou menor grau por ele.

É o efeito do pecado sobre nossa realidade como mulher que faz com que muitas não possam ter filhos, tantas outras simplesmente não desejem a maternidade e outras sejam péssimas mães.

A constatação da realidade histórica da maternidade levantada por Badinter não prova outra coisa senão a natureza caída e corrompida pelo pecado. Nascemos sob a maldição do pecado e, nesse sentido, nossa inclinação natural (anteriormente e perfeitamente planejada) para a maternidade e para amar nossos filhos sofre os efeitos da queda.

Não existe amor perfeito debaixo do sol. Nem mesmo o de mãe. Esse é um ponto correto e importante da acusação de Badinter. Depois da queda, amar, seja no sentido de obrigações morais e sacrifícios, seja no sentido de afeições e emoções, não é mais algo perfeito, nem mesmo para as mães.

A doutrina da depravação total nos informa que todos foram atingidos pelo pecado e que todos os aspectos de nossa humanidade foram manchados pelos efeitos nocivos do pecado. Cada célula, cada emoção, intelecto, vontade, relacionamentos.

Em Romanos 1:28-31 lemos que pelo pecado todos os homens (e mulheres) foram entregues a uma disposição mental reprovável. As afeições naturais, o amor pela família, as relações entre filhos e pais, foram igualmente atingidas pelo pecado.

“Além do mais, visto que desprezaram o conhecimento de Deus, ele os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem o que não deviam. Tornaram-se cheios de toda sorte de injustiça, maldade, ganância e depravação. Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia. São bisbilhoteiros, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes e presunçosos; inventam maneiras de praticar o mal; desobedecem a seus pais; são insensatos, desleais, sem amor pela família, implacáveis”. Romanos 1:28-31

Nossa capacidade de amar foi maculada pelo pecado, até mesmo a capacidade de amar os nossos filhos. A depravação total nos explica a razão para a quantidade de maus tratos, abandonos e abortos.

A influência e a extensão do pecado se apresenta de maneiras e em graus diferentes. Falar em depravação total não significa dizer que todos os homens e mulheres são tão depravados e perversos quanto poderiam ser. Não significa dizer que todas as mulheres odeiem a maternidade e estejam dispostas a matar seus filhos. Em algumas áreas, mesmo sob a influência do pecado, o homem natural preserva valores básicos, demonstrando, mesmo em rebeldia e atitude de independência em relação ao Criador, a lei que está inscrita em seu coração, de que algumas coisas são completamente antinaturais e por isso mesmo anormais.

Em Romanos 2:14-16 vemos que todos os homens demonstram, inscrito em seu coração, um padrão moral mais ou menos embotado pela influência do pecado. Os homens demonstram uma consciência natural dos padrões da lei. A consciência serve de padrão moral do homem natural por meio do qual ele considera algo certo ou errado - “O homem ‘sempre carrega consigo um tribunal silencioso no seu peito, sendo ele mesmo o juiz e o júri, e ele mesmo o prisioneiro no banco dos réus” (Bruce, p.1830)

Essa lei natural aponta para valores básicos, dentre eles, fundamentalmente àqueles relacionados à origem e a preservação da vida humana. Se o valor básico da preservação da vida humana impede que se veja com naturalidade um indivíduo tirar a vida de outro, a maternidade, por sua vez, carrega em si tanto os valores da preservação como da origem, do cuidado e do zelo pela vida. Negar os valores envolvidos na maternidade é ultrapassar a lei natural acusada pela consciência comum a todos os homens.

Talvez por isso Deus tenha utilizado a máxima do amor materno, não como afirmação deste ser perfeito ou infalível, mas por seu caráter natural e universal.

“Porventura pode uma mulher esquecer-se tanto de seu filho que cria, que não se compadeça dele, do filho do seu ventre? Mas ainda que esta se esquecesse dele, contudo eu não me esquecerei de ti.” Isaías 49:15

Apesar dos efeitos do pecado, a graça divina comum faz com que a humanidade não se destrua completamente. É através dessa graça comum de Deus restringe a maldade no mundo e possibilita que o homem faça algum bem relativo e as mães desempenhem seu papel materno.

A visão romântica da maternidade

Ao contrário das religiões e filosofias que sustentam que o homem é basicamente bom, o Cristianismo nos informa que fomos criados completamente bons, mas fomos completamente depravados pela entrada do pecado no mundo. Diferente de movimentos que sustentam uma visão da mulher além da que convém, as Escrituras nos mostram nossa real condição de pecadoras. Escrava dessa condição, a mulher necessita desesperadamente de Deus.

A mulher, bem como a maternidade, tem sido comumente tratada como algo sagrado. Historicamente a mulher tem sido vista em seu potencial materno como uma pequena deusa, naturalmente condicionada para oferecer amor sacrificial em prol de seus filhos, com seus instintos maternos infalíveis. Qualquer constatação de falibilidade do amor materno tem sido ou disfarçado ou execrado. E devemos estar atentos para não cairmos também nesse erro.

Se por um lado a tese desmascara a realidade da maternidade mostrando seu lado cruel, sua explicação tende a eximir a mulher da culpa por seus atos ao rejeitar qualquer padrão essencial de moralidade materna. A perspectiva da autora que começa pessimista termina desesperadamente desanimadora.

A compreensão bíblica do projeto divino para a maternidade, a compreensão da culpa e da responsabilidade humana pelo pecado e a boa nova de restauração pelo poder de Cristo nos dão uma perspectiva coerente e esperançosa com relação à tarefa materna.

Todas as mães lutam, em maior ou menor grau, para desempenharem sua função materna e amarem seus filhos. Todas as mulheres carecem de Cristo para vivenciarem a maternidade da forma como Ele a projetou. Compreender isso abre nossos olhos para algumas lições fundamentais:

- Não podemos desconsiderar a natureza caída e depravada da mulher.
- Os desejos para a maternidade estão corrompidos pelo pecado e precisam ser redimidos pela verdade de Cristo. Nossas inclinações para a maternidade não são perfeitas e acima dos efeitos do pecado.
- Não podemos desconsiderar a nossa limitação, a nossa necessidade de ajuda, a nossa falibilidade.
- Não somos pequenas deusas-mãe, perfeitas, supremas, sublimes, irrepreensíveis e autônomas em nossa tarefa materna.
- Nosso amor materno é falho e dependente do amor divino.
- Nossa maternidade é insuficiente
- Não há espaço para orgulho, autossuficiência
- Amor materno tem menos a ver com ‘romance materno’ e ‘sentimentalismo materno’ e mais com obediência e amor sacrificial
- Precisamos desesperadamente de Deus na nossa caminhada materna

O amor materno não é um mito. O amor materno foi projetado por Deus e, mesmo distorcido pelo pecado, é o esperado por Ele e pode ser experimentado por meio da sua graça.

Que desempenhemos a nossa missão materna em atitude de humildade e completa dependência do Senhor.
Renata Veras.

*Um amor conquistado: o mito do amor moderno.

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6 comentários

  1. Excelente texto! Que a Graça do Senhor nos ajude.

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  2. Os movimentos feministas têm esbravejado contra a ligação evidente que a mulher e a maternidade têm, mas glorifico a Deus por existirem mulheres que ainda levantam a sua bandeira. Que Ele possa continuar lhe abençoando. ☺

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    1. É verdade, Acsa!
      É triste a forma como tentam desconstruir algo tão fundamental e precioso aos olhos de Deus.
      Deus tenha misericórdia de nós!
      Abraço carinhoso,
      Renata Veras.

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  3. Obrigada por esse texto Renata!
    Mês passado por causa de um trabalho da faculdade estive pensando sobre esse tema, e você colocou em palavras o que eu pensei sobre isso!

    Que Deus continue te abençoando e te capacitando para mais textos como este :)

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    1. Que bom ouvir isso, Luana!
      Fico muito feliz. Que Deus nos abençoe!
      Abraço carinhoso,
      Renata Veras

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